Por: Ana Flávia Bassetti
O despertador tocou, como sempre, às oito. Quarta-feira. Ontem, tinha prometido a mim mesma que no dia seguinte iria para a aula de funcional das nove. Estava tudo programado: despertador, me permitir uma soneca de cinco minutos, olhar para a Madá, dar bom dia, me aninhar um pouquinho com ela e, então, levantar, tomar uma proteína, levá-la para o xixi já com as roupas da academia que ficaram sobre a cama ontem porque foi dia de musculação e não suei muito, voltar, escrever pelo menos dois dos quatro textos que tenho que entregar até sexta, ao cair do sol sair com a Madá de novo, voltar, tomar duas taças de vinho e me permitir, agora sim, chorar enquanto repasso todos os motivos pelos quais eu devo ir embora da sua vida, criar coragem, te mandar uma mensagem para combinar de conversar e enfim resolver as coisas e poder começar meu luto com dia marcado para terminar. Voltar a viver sem você.
O despertador tocou e os cinco minutos de soneca permitidos se transformaram em três horas. O sono dissolve a dor pontiaguda que eu sinto quando penso no que tenho que fazer e torna-se dilacerante quando penso nos motivos pelos quais eu ainda procuro motivos para não fazê-lo. Agora acordei e ela voltou. A Madalena não está. É estranho, pois ela tem se tornado cada vez mais dorminhoca nas manhãs, quase nunca se levanta antes de mim. Agora lembro que, no despertar de algumas sonecas de cinco em cinco minutos que aconteceram por três horas, tinha quase que intuído uma agitação pela casa, sem forças para procurar saber o que acontecia. Levanto, o pijama de inverno e as meias estão no chão, como de praxe quando faz frio e eu preciso colocar pijamas em camadas para me esquentar no início da noite e ir arrancando suas partes durante a madrugada. Talvez os alívios em fases sejam melhores do que aqueles que vêm de uma vez. Mas as dores, também?
Em Curitiba faz muito frio desde sexta, desde que eu falei com você pela última vez. Parece que o clima fez questão de forjar o cenário ideal para eu chafurdar de modo teatral na minha dor. Coloco o roupão, abro as cortinas, sinto vergonha de estar levantando só agora. Vou para sala. Vou fazer um café e vai dar tudo certo, produzo até mais tarde e ainda dá tempo do vinho, ainda dá tempo de chorar. Olho para a Madalena no sofá. Ela me olha com aqueles olhinhos de quem fez uma coisa que não queria fazer, mas teve que fazer. Eu a entendo. Penso que é mais fácil para ela do que para mim fazer uma coisa que não quer fazer, mas precisa fazer. Olho para o tapete da sala. Um persa bem colorido, comprado em uma promoção porque tinha pequenos defeitos. Eu gosto dos defeitos dele, os defeitos doam um ar de originalidade para as coisas. Para as pessoas também, e eu acredito muito que é nos defeitos que acontece o encontro. Mas e quando os defeitos do outro puxam os nossos para fora? O tapete também tinha a função, quando comprei, de dar um ar meio cabaré à sala. Talvez ele nem faça mais sentido, por causa do que eu me permiti sonhar com você. Sou bem mais de um domingo de jardim, amigos e crianças do que do cabaré, hoje. Quero ser.
Entre as cores bem vivas do tapete, um cocô dividido em duas fases: uma porção grande de merda dura, normal, dessas que as mães se orgulham quando veem, imagino, não só porque sugerem um funcionamento saudável do intestino, mas porque dão bem menos trabalho para limpar; junto dela uma outra porção mais líquida, de cor amarelada, para nada como uma merda saudável. Imediatamente: “ela sabe que alguma coisa está acontecendo”. Foi você quem me disse que o intestino era mais coração que o próprio coração? Me dói pensar que a tenho negligenciado esses dias, tenho estado impaciente. Mas também, o clima desde sexta não tem ajudado.
Na primeira vez que você veio à minha casa foi um festival de diarreia da Madá como nunca tinha acontecido, e os cocôs de aspecto não saudável duraram por, pelo menos, um mês. Eu sempre soube que era emocional e você, a princípio, disse que era paranoia minha, mas depois concordou.
Ela sabe que alguma coisa está acontecendo. Os bichinhos sentem. Talvez ela só sinta insegurança por notar uma atmosfera diferente e temer por mudanças que a afetem. Ela já sofreu bastante. Será que ela lembra do sofrimento ou os cachorros esquecem das dores quando por fim amados, ou novamente amados? Será que eu já senti essa dor que estou sentindo e esqueci? Será que o corpo falho que, quando submetido a algum tipo de estresse, transforma a merda saudável em merda problemática e ruim de limpar é o mesmo que lindamente nos faz esquecer das dores mais profundas que sentimos um dia? E será que, então, o meu será capaz de me fazer esquecer essa dor horrível de ter que ir embora te amando? Bom, mesmo que ela não seja sensível assim eu sei que ela sabe que alguma coisa está acontecendo porque as lambidas no meu rosto nunca foram tão salgadas, de certo. Ou porque sente saudades tuas.
Você arrumou o meu fogão. Eu consigo consertar o teu dragão?
Tenho que me desapegar das lembranças, tenho uma reunião online importante, em menos de meia hora agora. Tudo bem, o banho vai ser sem lavar o cabelo já que não fui para a academia. Ligo o chuveiro e vejo a sua escova de dentes e o vibrador que mora entre os frascos de shampoo desde que você foi embora. Ele também me ajudou a decidir fazer o que tem que ser feito, mesmo que doa muito e apesar da tua presença no banheiro em forma de bilhetes espalhados pelos azulejos. “Uma casa, um quintal, nossa família, música, comida e carinho”. Dói uma dor que vem na garganta. Tenho que fazer passar. Me apego à visão de uma eu muito aflita sempre te esperando, na casa do bilhete no azulejo. Era verdade esse bilhete? Vou até o quarto de vestir para deixar a escova de dentes com as suas outras coisas que ainda estão aqui. Também quero separar a roupa antes de tomar banho já que está frio e eu tenho, nesses dias, tido dificuldade para me concentrar na linearidade das escolhas cotidianas. A gente faz uma coisa enquanto pensa na próxima coisa que tem que fazer e quando está fazendo essa coisa a gente pensa na próxima. Funcional. Funcional como eu tenho que ser agora.
Já é noite. Vou até o quarto de vestir para, enfim, colocar uma roupa quente e confortável e ficar pronta para tomar o vinho e permitir as lágrimas, agora livres dos sorrisos funcionais do dia. Vejo suas roupas em cima da cama, muito bem dobradas. Ao lado delas, as minhas: roupas limpas misturadas com roupas já usadas, todas elas largadas e amarrotadas. E através dessa metáfora meio cafona e muito triste percebo tudo o que eu vinha fazendo por você e, sobretudo, tudo o que tenho feito de mim. Aborto as novas lágrimas. Escrevo. É assim que me desnudo, é assim que me entendo, é assim que me curo. E agora, escrevendo esta exata linha, apesar da dor, sinto que estou aqui. Voltei a ser. Um pouco mais em mim, sinto a confiança que preciso para te ver, para resolver. E, se você se esquivar, tenho esta crônica para te mandar. Ainda que, talvez, você nunca vá ler.
Que texto maravilhoso , eu senti todas as emoções, vi todas as cenas , lendo seu texto. Parabéns Ana Flávia
Que texto didático! Pude imaginar e sentir cada detalhe do que descreveu! Amei!!! 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼
Lindo testo Amore, senti todos os seus sentimentos, me vi fazendo parte dessa historia. Como sempre vc escreve maravilhosamente. Agora venha chorar de rir tomando um vinho comigo. Te amo minha amiga. Parabenssssssssss
Texto emocionante, Ana Flávia. Você escreve com muito bem e com muito sentimento, Parabéns!
Lindo texto.Faz compartilhar toda emoção nele contida