Por: Karoline Silva Costa
Passamos pelo primeiro mês do ano, mas a impressão é de que foi janeiro que passou por nós. Por cima. Não se tem notícia de onde não tenha havido inundações. Entre tantos mortos e desabrigados, quem não perdeu a casa e os móveis, perdeu um cachorro ou um gato, e ninguém mais sabe diferenciar tristeza de fome. É a falta de comida para milhões de brasileiros, a gasolina pela qual você não consegue pagar, uma pandemia que não tem fim porque o governo insiste em desestimular a vacinação… Um pequeno resumo da nossa imensa coleção de tragédias, todas provocadas ou agravadas nos últimos anos a partir da inescrupulosa gestão bolsonarista. E, ao carregar esse combinado medonho de buraco no peito com buraco no estômago, a gente vai tentando reencontrar a esperança de poder rimar amor com dor.
Aposto que a maioria de nós até dispensaria a parte do “cantar iê-iê-iê”; e Raul, se vivo estivesse, entenderia que, nesse contexto, chegamos ao ponto de preferirmos corações partidos ao invés de tantas desgraças sociais. Mas a gente anda sem paciência, sem saúde e sem tempo para celebrar um romance ou mesmo lamentar dor de corno. O Brasil de Bolsonaro é infecundo e todas as nossas energias são gastas para pensar formas de enxotá-lo. Porque a sua impassibilidade diante da morte mina em nós, pouco a pouco, o ânimo mesmo de viver. Mas é lembrar que os seus ideais políticos não são outros senão aqueles que passam pela desestabilização rasteira dos seus oponentes e pela própria desvalorização da vida, que a centeia da revolta é reacendida. Nós não podemos ceder a esse convite à apatia.
Portanto, que fevereiro, março, abril… passem por cima de nós igualmente. Ouviu-se que antes de melhorar, as coisas ainda poderiam piorar e eu acredito nisso. Mas se resistirmos um tanto mais, haverá certeza de que em outubro é primavera e, não à toa, rosas vermelhas adornarão o futuro desde a/o Alvorada. Para que o brasileiro volte a ser feliz, mesmo que chore de vez em quando depois de um pé-na-bunda. Pela possibilidade, expectativa e conveniência de viver ou sofrer de amor em paz, fora Bolsonaro!
Opiniões
Um homem desejava violentamente a uma mulher
A umas quantas pessoas isso não parecia bem
Um homem desejava loucamente voar
A umas quantas pessoas isso parecia mal
Um homem desejava ardentemente a Revolução
E contra a opinião da guarda civil
Trepou sobre os muros secos dos deveres
Abriu o peito e sacando os arredores de seu coração,
Agitava violentamente a uma mulher,
Voava loucamente pelo teto do mundo e os povos ardiam, as bandeiras.
Juan Gelman, poeta peronista argentino (1930-2014).