Por: Vinicius Carvalho
Minha mãe sabe que eu escrevo textos e que vivo disso na prática, mas nunca leu nenhum deles. Eu tento separar as coisas, pois não parece, mas sou meio tímido e para ter o conforto e a liberdade para escrever sobre determinados assuntos, prefiro que meus parentes não leiam.
Não é como se eu escrevendo fosse um personagem, mas o contrário, é como se eu fosse um personagem dentro da própria casa. Porém, desde ontem começou a cobrança da minha mãe, “Vinícius, amanhã é 100 anos do Brizola, você não vai escrever sobre ele”? Então, pedido de mãe é uma ordem. Meu pai sempre foi petista e minha mãe brizolista, esta foi a divisão da minha casa desde sempre.
A percepção de uma criança que viveu sob os auspícios do governo de Brizola em plena Baixada Fluminense sob dois mandatos é muito diferente do que o mito que foi criado em torno dele. Para nós, Brizola não era o homem da Campanha da Legalidade, o homem que havia voltado do exílio ou uma espécie de “Fidel Castro” brasileiro como afirmava em tons de temor a imprensa nacional.
Brizola era a dignidade batendo na nossa porta, era a autoestima de poder trabalhar com os sapatos engraxados, estudar com os kichutes limpos, pois Brizola significava o esgoto sendo canalizado, o asfalto chegando na sua rua e a água potável chegando na sua torneira. Para isso, sabia que tinha que governar e bem, para governar bem sabia que precisava conciliar, conciliar muito e tá tudo bem. Conciliar para quem nunca teve nada nunca foi problema, pelo contrário, sempre foi a política do possível.
Cabe lembrar que os anos 1980 e 1990 ainda eram marcados pela ação dos esquadrões da morte e grupos de extermínio, herança da ditadura militar, nos subúrbios e periferias. A esquerda possível nessas regiões ou estava restrita aos conselhos eclesiais de base, da Igreja Católica, ou às associações de moradores locais.
A primeira esquerda possível, as CEB’s, tinha participação limitada na vida política e acabava por se restringir em campanhas contra a carestia. Dom Adriano Hypólito, Bispo de Nova Iguaçu, ligado à esquerda, certa vez foi sequestrado, espancado, abandonado nu e com o corpo pintado de vermelho no Alto da Boa Vista. A segunda, os conselhos comunitários e associações de moradores, ainda mais vulnerável às estruturas violentas, era facilmente solapada e, por isso, mais uma vez, o que restava era dialogar e conciliar para barganhar.
Este foi o cenário que Brizola encontra ao voltar do exílio e vencer as eleições do RJ em 1982. Ali, não estava em jogo a geopolítica ou a revolução.
A revolução que Brizola faria, dali em diante, seria a esperança de futuro para as crianças pobres, o projeto dos CIEP’s implementado por Darcy Ribeiro e inspirado no modelo educacional cubano. Ensino integral, piscina, quadra de esportes, alimentação de qualidade e tranquilidade para os pais. A criança era deixada na porta da escola 7 horas da manhã e buscada às 18:00, alimentada, cheirosa e de banho tomado – afirmo sem medo de errar, se o projeto dos CIEP’s não fosse sabotado, o Rio de Janeiro hoje seria outro, um lugar infinitamente melhor, mais próspero e menos violento.
Outra revolução que Brizola faria seria cultural, nunca nenhum político se confundiu tanto e tão genuinamente com a cultura do Rio de Janeiro quanto o gaúcho. Brizola era oposto ao “manoelcarlismo* que dominava a imagem que a elite cultural carioca queria levar do Rio para o resto do Brasil, a Bossa-Nova-Zona-Sul, o branco forte moreno e de olhos verdes. Brizola era o homem que criaria o Sambódromo, era amigo de Beth Carvalho, era o cara que você entendia quando ouvia Fundo de Quintal.
Por ter ligação verdadeira com o subúrbio carioca, Brizola significou também uma melhoria na visibilidade da cultura verdadeiramente popular produzida na cidade.
Pouco ou nada faz sentido a tentativa que fazem até hoje de antagonizar Lula e Brizola. São figuras diferentes, com históricos políticos diferentes e que na época da redemocratização representavam bases sociais, políticas e espaços geográficos diferentes.
Brizola passara a ser forte no Rio, praticamente isolado, perseguido impiedosamente pela elite aristocrática local e pela Rede Globo, ainda nos anos finais da ditadura militar, e para isso teve que se aproximar do povo pobre e semialfabetizado.
Para tal, Brizola permeou o imaginário, não de jovens universitários e intelectuais recém voltados do exílio. Para fazer política popular, Brizola foi para São João de Meriti, filiou um pipoqueiro da pracinha central da cidade e o lançou candidato a prefeito pelo PDT. Foi para Caxias e filiou manicures, foi para Queimados e filiou pedreiros, foi para Magé e filiou açougueiros.
No Rio, sob rejeição e oposição da elite reacionária e da esquerda ilustrada, filiou e contou com apoio de figuras que a intelectualidade cultural havia transformado em personagens exóticos, como Agnaldo Timóteo, Carlos Imperial e até o Capitão do Tri, Carlos Alberto Torres.
Lula, em São Paulo, contava com uma base muito mais organizada e orgânica. Apoio de intelectuais da USP, do Novo Sindicalismo que beirava milhões de sindicalizados, dos Conselhos Eclesiais de Base – mas não numa região conflagrada pelo extermínio e pela miséria como a Baixada Fluminense – e sim no urbanizado, próspero, industrial, rico e desenvolvido ABC Paulista.
Não deveria existir choque ou rivalidade, Brizola e Lula representariam a complementação perfeita entre dois mundos e duas classes populares. Curiosamente, uma classe popular, a paulistana, industrial e filha da CLT de Vargas mas que tentava antagonizar e superar o varguismo; e outra, a fluminense, tão precarizada que em plenos anos 1980 sequer ainda tinha acessado aquele Brasil varguista, ainda estavam vivendo sob as condições de vida de algo muito parecido com a Velha República.
Lula, um pernambucano que migrou da seca e dos resquícios da Primeira República para a industrial São Paulo. Brizola, um gaúcho politicamente e socialmente bem posicionado que, bem como outros gaúchos, Vargas e Jango, foram para o Rio de Janeiro e lá tomaram um banho de povo.
Percebam, este é um texto que conta a perspectiva de um jovem sobre o Brizola, um texto de felicitações. Não cabe nele fazer apontamentos críticos, que até podem existir, mas não faria sentido aqui. Acredito que estejam pululando milhares e milhares de textos sobre o Velho Briza hoje na rede, alguns exaltando sua história, alguns se repetindo, muitos dizendo o quanto ele foi injustiçado, dezenas de outros querendo apontar suas inconsistências.
Já este, eu quero que seja uma carta de agradecimento em nome de quem foi criança sob seu governo, de pobres que tiveram as vidas melhoradas sob seu mandato. É um texto escrito a pedido de uma senhora nordestina que migrou para o Rio e gostava do Brizola de verdade, não no imaginário da classe-média ou dos seus meandros ideológicos, mas do que o Brizola tinha de povão.
Este texto é uma homenagem não apenas ao centenário de Leonel de Moura Brizola, mas também para a minha mãe que o pediu e mas não lerá, pois sequer terá paciência para tal. Porém ficará muito feliz e gratificada em saber que eu o escrevi.
Este foi o Brizola que eu conheci e marcou a minha vida, muito obrigado por tudo, Velho Briza.
* Manoelcarlismo; termo criado pelo amigo suburbano, Vitor Almeida. Historiador, intelectual, trabalhista, brizolista e ex-candidato a vereador pelo Rio de Janeiro, pelo PDT. Manoelcarlismo é o ato de produzir uma imagem única sobre o Rio de Janeiro, a de um suposto estilo de vida carioca, reproduzido pelas novelas de Manoel Carlos usando o Leblon como cenário e a Bossa Nova como onomatopeia.