Por: Firmino

Seguindo a tradição de Mariategui, o boliviano Alvaro Linera é um dos mais instigantes pensadores marxistas da atualidade. Teórico e militante, aplica o marxismo à realidade latino-americana, especificamente à realidade boliviana, como o fez Lênin ao aplicar o método marxista à situação concreta da Rússia no séc. XX, seguindo à regra a tese de que a ciência de Marx não é um dogma mas um guia para a ação, Linera aponta como sujeito histórico do processo revolucionário em curso na Bolívia os povos indígenas, portanto, em grande parte, o campesinato, ao contrário do que predizia o marxismo dogmático, cujo sujeito histórico é o operariado. A diferença entre Lenin e Linera é que para aquele a incipiente mas combativa classe operária russa seria a vanguarda da revolução que despontava no horizonte; e o campesinato russo, 80% da população, mas politicamente despreparado, apesar do histórico de revoltas, era apenas um aliado tático da vanguarda proletária – como estava explícito no chamado à aliança operário-camponesa, no programa do Partido Bolchevique.
O processo revolucionário boliviano se inicia na resistência ao projeto neoliberal implantado em toda América Latina e de forma ainda mais cruel na Bolívia, com a privatização da água ( a guerra da água) no início deste século. Linera aponta cinco fases deste processo que avança de um republicanismo-proprietário até o atual republicanismo comunitário, conduzido pelo MAS de Evo Morales ( Linera foi vice-presidente da Bolivia no primeiro mandato de Evo). A primeira fase foi caracterizada pela resistência popular às políticas neoliberais implantadas desde Washington e com o apoio da classe dominante boliviana, com a mobilização de um poderoso bloco popular urbano-rural em torno do movimento camponês indígena, que trouxe à tona a crise do Estado, cuja dominação foi posta em questão com o consequente aparecimento das contradições históricas da dominação burguesa-colonialista no país ( Estado monocultural versus sociedade plurinacional) e as contradições de curta duração, como as nomeia Linera – nacionalização das riquezas naturais versus privatização.
Na segunda fase, acentua-se a crise de dominância burguesa-colonialista, os de cima não conseguiam governar e os debaixo começavam a articular e exigir formas de autogoverno. A disputa pela ordem estatal paralisou a reprodução da dominação – que Linera denominou de “empate catastrófico”. Essa situação perdurou de 2003 a 2008.

A terceira fase foi caracterizada pela sublevação do povo. Os dominados passavam à ofensiva, quebrando o impasse e levando Evo Morales à presidência, dando início à quarta fase do processo revolucionário, ou o momento jacobino da revolução, em que as classes antagônicas se radicalizam e medem suas forças. Em 2008 acontece a tentativa de golpe pela classe dominante, com apoio do imperialismo americano. O povo derrota os golpistas graças a grande mobilização, ocupando estradas, assumindo o controle de fato das cidades e neutralizando as forças de repressão da burguesia-colonialista. Derrotado o golpe, o bloco popular índigena-camponês se consolida no aparelho de Estado. Tem início a quinta fase revolucionária que se prolonga até hoje com as nacionalizações e a divisão da renda nacional entre todos os bolivianos, com o controle econômico nas mãos do Estado e a grande burguesia sob controle democrático da população ( As classes dominantes, embora politicamente derrotadas, não perderam sua força nem o apoio foraneo e tentaram novamente um golpe de Estado, mais uma vez derrotado, depois da hesitação inicial das forças populares).
Esta quinta fase é caracterizada pelas “ tensões criativas” entre os movimentos populares, segundo Linera, na sua caminhada rumo a um socialismo comunitário do bom viver. Agora afloram as contradições dentro do próprio bloco popular governante, com as reivindicações cada vez maiores dos trabalhadores ainda encontrando dificuldades de atendimento dentro de um Estado herdado da estrutura colonial. A tensão entre interesses particulares dos dominados e os interesses gerais dentro do bloco popular governante, levando por vezes a impasses dos quais a burguesia colonial tenta se aproveitar para dividir a massa popular e seu governo.
Creio que apresentei, em linhas gerais, e muito brevemente, a quem não conhece, o processo que levou a uma das mais fecundas elaborações marxistas da atualidade. Os erros e omissões são de minha exclusiva responsabilidade. Mas quem quiser conhecer o pensamento de Linera, há livros dele traduzidos para o português.
Firmino Torres, observador.