Por: Rodrigo G. M. Silvestre

O Presidente Joe Biden anunciou, no dia 06 de Outubro de 2020, um perdão a todas as pessoas que estejam privadas de liberdade e processadas por simples porte de maconha na esfera federal. Essa é uma aparente conquista do campo progressista, com um passo na direção a descriminalização federal da substância.
Os Estados Unidos tem diversos estados que já legislaram sobre o uso recreativo e de saúde dos produtos derivados de Cannabis sp., mas a legislação federal ainda guarda um regramento bastante rigoroso com relação a esses produtos. Classificam ainda como substância Classe 1, como a heroína, que não tem utilidade terapêutica e usos em saúde. Esse foi um dos pontos solicitados na fala do Presidente Biden, que os órgãos de regulação reavaliem a classificação dos produtos de Cannabis sp. para reconhecer sua utilização na indústria de saúde.
Para os latino-americanos, o que significa essa manifestação progressista do Presidente do EUA? Porque do ponto de vista prático a medida atingiu cerca de 6.500 pessoas que se enquadram na proposta de perdão, bem como nenhuma pessoa que efetivamente está privada de liberdade no país e será atingida pelo perdão presidencial.
Essa é então uma ação mais de sinalização que de efeito real. A guerra às drogas, que a décadas é a política determinante nos Estados Unidos, tem profunda reflexão nos países latino-americanos. A imposição do combate a indústria de drogas, nos Estados Unidos, não era proporcionalmente severa para habitantes do território dos EUA como é para os habitantes dos territórios produtores de drogas, como Colômbia e Bolívia. Será então que o posicionamento do presidente americano é uma sinalização para o arrefecimento dessa política?
O que ocorre mais recentemente é que a indústria de saúde tem trabalhado fortemente com a introdução de produtos à base de Cannabis sp. e isso tem levado a um questionamento sobre a utilidade da manutenção da atual regulação. Os empreendimentos baseados em produtos de Cannabis sp. por exemplo, tem sérios problemas para utilizar o sistema financeiro federal no EUA, pois a legislação entende que os lucros obtidos nessa atividade precisam ser enquadrados dentro da lei antidrogas.
Pode-se então concluir que a motivação para a atual postura seja mais para sensibilizar os eleitores jovens com relação aos candidatos democratas nas eleições legislativas que se aproximam nos EUA. Somada a uma motivação tipicamente americana, que é promoção e facilitação da atividade empresarial, especialmente com capacidade para dominar mercados externos a partir do posicionamento do governo federal americano. Bem menos, portanto, pela sinalização de uma postura menos controladora dos EUA em relação aos países latino-americanos.
O Brasil tem também flertado com a essa mudança progressista induzida pela indústria de saúde. O tamanho da população a ser atendida por esse tipo de produtos tem criado crescente interesse na regulamentação da atividade no país e também pela aquisição centralizada pelo SUS.
Especialmente duas Resoluções da Diretoria Colegiada (RDC) da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) regulamentam atualmente a utilização dos produtos derivados de Cannabis sp. no país (RDC Anvisa n.º 327/2019 resolução e RDC nº 335, de 24 de janeiro de 2020). Também existem nas casas legislativas projetos como o PL 399/2015 na Câmara do Deputados e o PL 4776/2019 no Senado Federal. Todas essas regulamentações tem em comum o atendimento aos interesses crescentes da indústria de saúde na oferta desse tipo de produto.
Todas essas evoluções no campo da saúde têm colocado em xeque o enquadramento dos produtos derivados de Cannabis sp. com não tendo utilidade terapêutica, portanto, minando fortemente os argumentos apresentados ao longo de anos sobre o “terrível efeito” do consumo de substâncias como CBD e THC.
Em paralelo a essa evolução na área de saúde, o Brasil realizou alterações progressistas em sua legislação. Por exemplo, é possível relembrar que o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a autoridade policial pode lavrar Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) e requisitar exames e perícias em caso de flagrante de uso ou posse de entorpecentes para consumo próprio. Ou seja, que na presença de pequena quantidade de drogas, o usuário, ao ser levado a delegacia pode receber a opção pelo TCO ao invés de ser processado criminalmente.
Esse é um ponto fundamental, pois a discricionariedade do ato de opção pelo TCO é fortemente influenciada pelos preconceitos e estereótipos sociais. Sendo necessário dizer que a população periférica, preta, parda e pobre é objetivamente mais penalizada por escolhas da autoridade policial. Esse mesmo viés é reconhecido na declaração do Presidente Biden, pois afeta de maneira semelhante a população norte americana.
O Brasil também observa ansiosamente os desfechos do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que tentou pela última vez retomar, em 06 de novembro de 2019, a análise do Recurso Extraordinário nº 635.659, que propõe a descriminalização do artigo 28 da Lei nº 11.343/2006. Com três ministros já tendo realizado seu voto, especialmente o relator, que recomenda a substituição das medidas privativas de liberdade para sanções na esfera administrativa. Muito ainda falta para a conclusão do processo e também para saber como as medidas efetivamente irão impactar as pessoas no país.
Cada vez mais a sociedade caminha para tratar as questões das drogas como problemas de saúde pública e não de segurança pública. Isso terá impactos relevantes na forma como lidamos com o encarceramento no país, em especial dos contingentes que são colocados à margem do sistema capitalista hegemônico. Mas a velocidade como que as medidas chegam efetivamente a impactar a vida das pessoas latino-americanas, parecem ainda aquém de qualquer nível satisfatório. Não é plausível que o interesse público tenha que ser sempre rebocado pela livre iniciativa para romper as barreiras de pensamentos, regulações e legislações.