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A POLÍTICA SOCIAL NAS REINVENÇÕES DO LIBERALISMO

Posted on 23 de novembro de 20214 de agosto de 2025 by americaprofunda

Por: Thaís Pagano

(Ilustração de Drawlab 19)

Em meados de outubro/2021, foi amplamente disseminado nas redes sociais um vídeo de um grupo de pessoas revirando um caminhão de lixo a procura de alimentos, em um bairro nobre de Fortaleza. No começo de novembro/2021, outro vídeo de um homem implorando por comida em um condomínio de prédios em Brasília, gritando “É fome, por favor, é fome!”, repercutiu na imprensa. Essas cenas, espetacularizadas pela mídia, evidenciam a intensificação da insegurança alimentar na pandemia, um grave problema social presente cotidianamente nas periferias das cidades brasileiras, decorrente da agudização do fenômeno do pauperismo.

Segundo o cientista político José de Souza Martins, “os problemas sociais não poderão ser resolvidos se não forem desvendados inteiramente por quem se inquieta com sua ocorrência e atua no sentido de superá-los”. A indignação frente à desigualdade social, reproduzida por meio de um complexo mecanismo que envolve diversas instituições, deve nutrir a ação dos sujeitos sociais comprometidos com a constituição de uma sociedade, de fato, justa e igualitária. Nesse sentido, nosso papel na construção de uma nova realidade social reside, entre outros, na contextualização dos fenômenos sociais, alimentada permanentemente pela consciência crítica.

A compreensão das relações sociais exige análise do confronto de projetos societários vigentes e por isso a proposta desse texto é apresentar elementos que propiciem reflexões acerca da política social sob o prisma da tradição marxista, que oferece ferramentas para o exercício do pensamento crítico, abordando a política social a partir da perspectiva crítico-dialética, fundamentada na ótica da totalidade, resultante das contradições estruturais produzidas pela luta de classes, no contexto do capitalismo. Sendo assim, a questão social, manifestada no conjunto de desigualdades decorrentes das relações sociais constitutivas do capitalismo contemporâneo, se configura como referência para o desenvolvimento das políticas sociais.

A política social, como mediação entre economia e política, é um processo que revela a interação de um conjunto de determinações econômicas, políticas e culturais. Seu desenvolvimento, com a demonstração de seus limites e possibilidades, deve ser elucidado no panorama das relações conflitantes entre Estado e sociedade civil, abrangendo o movimento de produção e reprodução da acumulação capitalista.

Para entender o surgimento e desenvolvimento da política social no Brasil, é preciso considerar suas peculiaridades por meio do resgate de sua trajetória histórica. Um país que carrega as marcas do processo da colonização, da subordinação e dependência do mercado mundial, possui a formação do capitalismo determinada pela heteronomia. A herança do escravismo penetra nas relações sociais, nas condições de trabalho e no ambiente cultural brasileiro. A criação do Estado nacional, que possibilitou o movimento de ruptura com a aristocracia, não se comprometeu com nenhuma ação de proteção e garantia dos direitos sociais por parte das elites econômico-políticas.

O desenvolvimento do processo de industrialização na década de 1930 alterou a paisagem urbana e criou as condições para o fortalecimento, em território nacional, da classe operária, que já vinha se formando desde os últimos 25 anos do século anterior, marcando a sociedade pelo forte antagonismo entre as classes burguesa e proletária. Nesse período, o Brasil não possuía ainda uma legislação trabalhista que amparasse a classe operária, fazendo emergir constantes conflitos na luta por direitos básicos, como redução da carga horária, melhores salários e condições mais salubres no ambiente de trabalho.

Com a expansão da economia capitalista monopolista, o Estado defrontou- se com duas demandas: absorver e controlar os setores urbanos emergentes e buscar, nesses mesmos setores, a legitimação política. Para isso, adota uma política de massa, incorporando parte das reivindicações populares, controlando a autonomia dos movimentos reivindicatórios do proletariado por meio de canais institucionais, absorvendo-os na estrutura corporativista do Estado. Os excedentes gerados pela acumulação de capital, propiciados pela produção em massa, foram direcionados pelo Estado para o financiamento de políticas sociais públicas. Houve, assim, a manutenção do poder de compra dos trabalhadores, o reconhecimento do movimento sindical em sua luta por reivindicações políticas e sociais e a expansão da prestação de serviços sociais, levando o Estado a desenvolver novas funções econômicas, políticas e sociais.

A questão social passa a ser administrada e controlada pelas vias institucionais, por meio de ações de proteção social, consolidadas por medidas de cunho controlador e paternalista do varguismo, nas décadas de 1930 e 1940, definindo uma espécie de pacto político entre as classes, como a valorização da saúde do trabalhador e o conjunto de leis regulamentadoras das relações capital e trabalho, como a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o Salário Mínimo, a jornada de 8 horas e o direito às férias, a proteção do trabalho da criança e da mulher e a Legislação Sindical.  Uma vez que essas medidas se destinavam somente aos trabalhadores com carteira assinada, as pessoas que não se enquadravam nesse critério, como trabalhadores/trabalhadoras informais e as pessoas desempregadas, ficavam desprovidas de qualquer proteção, restando às obras sociais e filantrópicas a responsabilidade pela assistência aos mais pobres, configurando uma marcante dualização da política social brasileira.

As políticas sociais, então, surgem no sistema capitalista monopolista, como resposta às pressões das classes operárias, como forma de reparação aos agravos provocados pela exploração das forças produtivas e para manutenção do sistema responsável pela concentração, cada vez maior, da renda em favor dos grupos hegemônicos. Tornava-se, assim, necessária a manutenção da paz social, via políticas públicas. Grande parte dessas políticas surgiram no governo Vargas, e por isso é um período considerado como importante marco na conquista dos direitos trabalhistas. Porém, com evidente processo excludente, já que dava direito apenas aos segmentos considerados produtivos, deixando boa parte da população dependente de ações segregadas de proteção social benemerente.

Somente em 1988 ocorre a generalização dos direitos sociais no Brasil, com a promulgação da Constituição Federal, na qual novas bases são colocadas para o Sistema de Proteção Social brasileiro. Nasce assim a Seguridade Social, modelo que articula o atendimento por parte do Estado às demandas sociais nos campos da saúde, assistência social e previdência social, de caráter universalizante. Portanto, por meio da Política Social e de seus benefícios, o Estado busca manter a estabilidade, diminuindo desigualdades e garantindo direitos sociais, em um contexto de significativo aumento da pobreza, remodelando a questão social no país.

A partir da década de 90, a perspectiva privatizadora, decorrente das transformações estruturais do capitalismo contemporâneo, passa a configurar um período de relevante subordinação das políticas sociais às políticas de ajuste da economia, representando grande desgaste do sistema público de proteção social, com o encolhimento dos investimentos públicos no campo social, atingindo duramente as relações de trabalho, intensificando sua vulnerabilidade. A retórica liberal encontrou solo especialmente fértil no Brasil, país construído por relações clientelistas e de favor, articuladas economicamente com o universo do capital, que dissimulam a violência presente, até hoje, nas relações de produção. O liberalismo, que é uma filosofia e uma prática política nascidas com o capitalismo, possui várias gradações e sua premissa busca justificar a dissociação entre o produtor e o resultado do seu trabalho.  Sua característica central é garantir a expansão do capitalismo, naturalizando seus desdobramentos. Seu objetivo medular, seja do neoliberalismo, do ultraliberalismo e, agora, do ultraneoliberalismo, é defender a propriedade do capital em detrimento à classe trabalhadora, mediante sua execrável e contínua exploração.

O liberalismo se configura como política de Estado, protege essa instituição dos levantes populares e, consequentemente, favorece os grupos dominantes, encorajando-os a usurparem os bens públicos. A doutrina do ultraneoliberalismo, faz com que o Estado austericida camufle as artimanhas fiscais do empresariado, constituindo-se assim em uma política de endividamento de grandes proporções. Dessa maneira, recursos destinados às políticas sociais são usados para eximir impostos das classes dominantes, em consonância com a aguda precarização dos trabalhadores. A expansão do capitalismo equivale à produção crescente da desigualdade social. Assim, o atendimento às necessidades sociais, como saúde, educação, etc., deixa de ser responsabilidade do Estado e passa para a competência do mercado, ocorrendo a mercantilização dos serviços públicos.

Nesse contexto, a análise das políticas sociais brasileiras revela sua natureza compensatória, focalista e seletiva, direcionada ao atendimento de situações extremas de pobreza e de sobrevivência, descaracterizando sua atuação na perspectiva da garantia de direitos e exercício da cidadania. As práticas de benemerência são recuperadas e reatualizadas pelo Terceiro Setor (Ong´s) e o enfrentamento às demandas sociais passa a ser uma tarefa articulada entre sociedade civil e Estado. O avanço do neoliberalismo enquanto paradigma político e econômico globalizado evidencia grandes contradições no campo da Seguridade Social pois, apesar de se ajustar à ordem capitalista internacional, reduzindo a função social do Estado, com inúmeras privatizações, limitando benefícios sociais e investimentos públicos, priorizando o voluntariado e a solidariedade, a Constituição Federal de 88 reconhece os direitos sociais e preconiza a Seguridade Social como um sistema de garantia de diversas circunstancias sociais.

É fundamental reconhecer que as inovações contidas na Seguridade Social, especialmente no âmbito da Assistência Social, como os programas de transferência de renda, respondem às necessidades e direitos concretos de seus usuários. No caso do Programa Bolsa Família, criado em 2003 e extinto na semana do dia 15.11.2021, a transferência monetária estava articulada com políticas educacionais, de saúde e de trabalho, contemplando diversos públicos como crianças, jovens e adultos de famílias pobres, com o objetivo de possibilitar um enfrentamento à pobreza e às desigualdades sociais e econômicas no país. O Bolsa Família está sendo substituído pelo programa social Auxílio Brasil, cuja fonte de recursos ainda não foi informada pelo Governo Federal.

O Estado intervém na esfera da vida diária da população, estabelecendo uma relação muito próxima com ela. Diante desse quadro, as organizações populares também procuram fortalecer suas resistências, para reagir à mercantilização das políticas sociais e suas condicionalidades, questionando as relações de força em movimentos cotidianos, expressando protestos contra as medidas do Estado, que é uma condensação de forças e suas relações são mediações, processos de enfrentamento, conflitos de forças, que se organizam de forma diversificada.

Presenciamos cotidianamente o aumento exponencial da pobreza, do desemprego e da desigualdade social, em um cenário marcado pela corrosão de direitos sociais e pela massiva desresponsabilização do Estado em seu papel de agente público, que possui o dever de articular as diversas políticas sociais no atendimento às demandas da população. Segundo a Rede PENSSAN, de 2019 para cá o número de pessoas em insegurança alimentar quase dobrou no Brasil. Os desafios são inúmeros diante da reinvenção do liberalismo, que prioriza a lógica economicista e autoritária, promovendo a intensificação do individualismo e do consumismo.

O desmonte, no contexto do trabalho, é aprofundado pelas contrarreformas trabalhista e previdenciária, com forte impacto nas políticas sociais, em decorrência do congelamento dos recursos públicos. Associado a isso, a culpabilização dos movimentos sociais, da pobreza e o genocídio da classe trabalhadora, revelam a necessidade de se resgatar o trabalho de base, por meio de ações política e pedagógica que possam debater com os sujeitos as causas da problemática social, as escassas respostas das políticas públicas às demandas sociais e o não atendimento aos direitos sociais. A luta pela descriminalização dos pobres e suas famílias deve estar presente de forma ininterrupta na agenda progressista por meio de pactos sólidos, com o objetivo de alimentar a organização dos segmentos populacionais com o objetivo de construir movimentos coletivos de resistência.

É necessário combater a rentabilização da política social e a especificidade que reside na em sua limitação como política de enfrentamento à pobreza apenas em sua dimensão emergencial, focalizada e assistencial, contrapondo o atendimento às demandas sociais com traços paternalistas e repressivos, cujas ações são subordinadas aos interesses econômicos. Fortalecer os movimentos sociais e os sindicatos de diversas frações da classe trabalhadora, é fundamental para intensificar a pressão sobre a arrecadação de impostos sobre rendimentos mais altos. Como condição para a garantia dos direitos civis, políticos e sociais da classe trabalhadora, a luta a favor da equidade e justiça social na perspectiva do acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais, deve ser priorizada. É urgente a defesa de políticas sociais universais, capazes de enfrentar a desigualdade social por meio da transformação da base econômica.

A política social é uma modalidade de política pública, que permite o acesso a recursos, bens e serviços sociais necessários, sob múltiplos aspectos e dimensões da vida: social, econômico, cultural, político, ambiental entre outros. Sua atuação deve extrapolar a gestão da pobreza e o controle dos riscos sociai e não deve ser naturalizada como forma paliativa de enfrentamento à pauperização, reduzindo drasticamente seu alcance. Na perspectiva da cidadania, ela deve se fundamentar na luta coletiva pela equalização de oportunidades, melhoria das condições sociais dos sujeitos, concretização de direitos e da justiça social.

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