Por: Ana Flávia Bassetti
Tempos sombrios como o que estamos vivendo pedem foco. Mas, sobretudo, pedem luta. E não há luta política que não seja conjunta. Não há conjunto sem afinamento. Não há afinamento sem diálogo. É necessário transformar, de dentro para fora. Não, não é simples. Já começo dizendo que o meu olhar parte de uma lupa sensível voltada para um universo muito íntimo. Mas é o meu universo, é o que vivo e, meus caros, não há verdades minhas que não saiam das vísceras. Vísceras que só entendem o que já sentiram na pele ou ruminaram empaticamente no coração.
Venho falar de um tema que há algum tempo divido com amigas e, ainda que timidamente, amigos de noites e conversas fecundas. Estou ambientada num pequeno reduto da esquerda curitibana que tanto me acolhe, mas que também tanto me frustra enquanto mulher. Na mesa há uma pauta que nos une: a avalanche vil de uma política que nos magoa, nos sufoca, nos revolta e nos confraterniza. Porém, a cisão é iminente logo as luzes se demoram. No caminho entre a mesa em que dividimos a pauta, o cinzeiro e os copos até qualquer tipo de relacionamento mais íntimo a tragédia se anuncia. A esquerda ainda escuta samba. E viva! A esquerda masculina hetero cis ainda tem saudades da Amélia. Trágico!
Existe uma fraternidade (se não é o bom e velho português nos desnudando) que se autoprotege e que não inclui as mulheres mas que, ao contrário, usa a misoginia como argamassa afetiva do seu laço. Freud explica a brotheragem! Em “Psicologia das massas” ele fala que o sentimento mais importante para a sensação de pertencimento identitário e consequente coesão de um grupo é o repúdio. Eu não estou exagerando. A misoginia, afinal, toma várias facetas: do discurso antifeminista declarado – e até feminicídio – à exaltação das mulheres, mas enquanto objeto.
Nas regras da “casa dos homens”, vale não se envolver (publicamente, claro) com a ex de um amigo para poupar-lhe qualquer desgaste, mas não vale se posicionar contrariamente a um gaslighting público para proteger uma amiga de uma injustiça e quiçá outros danos internos. No primeiro caso, a mulher é colocada como propriedade: um objeto com o qual se pode interagir, mas nunca abrir espaço para qualquer tipo de conexão. No segundo caso, o consentimento que o silêncio traz produz o resultado organicamente: a mulher que sempre fica como a louca, que causa confusão. Vale manter as mulheres do grupo a uma distância que permita que o homem continue no centro, usando de forma sacana uma herança de camadas e camadas de rivalidade feminina mantida funcionalmente a favor do patriarcado. É estratégico! Afinal, uma feminista incomoda muita gente, duas feministas desmascaram muito coisa.
Não lembro quem foi que disse: “não há nada mais parecido com um machista de direita do que um machista de esquerda”. E eu ainda alerto para o perigo refinado do segundo. Ora, minhas luzes de emergência acendem facilmente diante de um extremo direitista com sua misoginia escancarada. Mas ainda demoro a perceber o quanto ainda faço berço para a base (maternal?) da esquerdomachia. É difícil dissecar o machismo inteligentemente velado. Tão sutil, tão concreto, tão canalha. É fácil mandar um hetero-top escroto para as cucuias, sem dó. Difícil mesmo é lidar com um parceiro de ideias e ideais que, muitas vezes por pura repetição, nos pega no âmago. E pode nos destruir. Vos digo, então, com conhecimento de causa e causos: não passarão!
É sobre isso que eu quero falar. Não só aqui. Não quero ser emissora, quero fazer parte. Paro este texto em súplica: vamos falar sobre isso! Pode soar torpe falar de qualquer coisa que não pareça estar estritamente relacionada à desesperança do momento presente. Mas, para que alguma coisa emerja dos nossos sonhos de boteco, para que nossas pretensões eleitorais tomem forma, para que nossos ideais sociais fecundem, precisamos nos afinar! Sendo assim, este texto é para dentro, mais do que tudo. É para os amigos de luta e jornada. É mais do que um pedido de reflexão e de ajuda. É um pedido de “vamos juntos!”. Mando um “sinto muito”, posto que enfim me nego à culpa, à você companheiro que se sinta ultrajado, ofendido e até incompreendido. Mas, peço licença para a provocação, você é o alvo maior do pedido encarecido que aqui humildemente derramo: você sente isso porque ainda conserva (conservador?) o modus operandi que te serve e que – eis o mais triste da (tua) história – também te destrói. Te destrói de dentro para fora. Te destrói porque te mantém refém de uma masculinidade tóxica que inibe o teu ser em plenitude. O índice de suicídio só cresce entre os homens. É verdade que as mulheres tentam mais, mas até na hora de morrer o cabra tem que ser macho, não é mesmo? E te destrói porque atrasa, e muito, a tua luta que é nossa.
Se doeu, te digo: não há mudança açucarada. Se movimentou qualquer coisa aí dentro: me coloco à disposição. Não como seio ou ventre, mas como ombro, ouvidos e coração. Para, afinal, continuarmos juntos, só que lado a lado.
(ilustração: Charles Dana Gibson)